segunda-feira, 7 de março de 2016

Intervenção - Simpósio do Clero, 2015

O Preço Da Palavra

Lídia Jorge*

         O tema deste painel  é  deveras  estimulante,  pois  falar,  a partir de um ponto de vista exterior,  sobre os desafios  que se colocam hoje em dia à vida dos padres, equivale a passar em revista algumas das  mais elevadas utopias  que movem as sociedades contemporâneas.  Aqueles a quem nos dirigimos, por convite dos próprios,   são os intérpretes mais visíveis  de um determinado desejo de  superação  colectiva  latente em todas as culturas,  e esse ministério tem um preço.  Sendo pessoas como todos,  estão  os padres investidos,  publicamente, de um projecto in-humano que é o da realização  activa  de um processo de transcendência.  Ou por outras palavras,  são os padres  pessoas comuns  que aceitaram ser investidas de responsabilidades incomuns.

         Tão incomuns  que do padre se espera que seja justo,  atento, acolhedor,  fraterno, terno,  probo, simples, dinamizador,  persistente, valente, discreto,  casto, visionário,  prosélito,  paciente,  confidente,  eloquente e sábio.  Se for tudo isso,  talvez mereça  que se lhe junte, por certo,  a palavra que está na meta das suas vidas,  na terminologia cristã, que é nada mais nada menos do  que  ser  santo. 

Mas essas contas não nos dizem respeito, essa contabilidade  da perfeição e da imperfeição é do foro privado, e coincide com as contas que todos damos da nossa humanidade,  mais que não seja, perante nós mesmos.  O que  importa  nesta circunstância  é que  de entre  todas as   qualidades diante das quais o padre parece  ter o dever de não  falhar,   sobreleva uma outra,  que hoje em dia toda a gente  menciona, quando a Igreja é avaliada  enquanto  entidade  de poder e influência. Ao padre exige-se-lhe que saiba  ler o seu tempo. Mais do que isso, exige-se-lhe  que  ajude a construir o  tempo que está para vir. O que equivale a pedir-se-lhe que seja  um clarividente e um vanguardista, ou pelo menos que reconheça  onde está a vanguarda e perante ela se defina  em público.

Não é pouca coisa, sobretudo num tempo em que as questões vitais  do direito ao nascimento, do direito à morte,  as  novas questões de género  e o novo agregado  humano,  bem como os  difíceis  dilemas  do convívio global sobre a Terra,  ocupam lugares  de disputa  e são  motivos de fractura.   Nesse  difícil  exercício  de clarividência,   como em todas as outras tarefas,  por certo que os padres não  ignoram os anseios mais profundos dos seus vizinhos no tempo, nem os seus desejos nem os seus sonhos,  e nem as suas perversidades e  as suas abjecções,   porque os homens a as mulheres  são feitos de tudo isso. E também não  ignoram  o esforço  a que  procedem outros  campos  da espiritualidade,  que não só o  religioso,  para que  as pessoas se elevem acima dos seus limites, através da prática do bem, mas também da fantasia e da beleza.  E é  aí que   são convocadas, como disciplinas fundamentais, a  Literatura  e a Arte. São  convocadas por tudo aquilo que representam em matéria de ensaio de superação,  e por isso mesmo  proporcionam  um  indiscutivel espaço de   conhecimento.   Um conhecimento indispensável, creio, a todo aquele  que  precisa de entender em profundidade o fluxo de vida que perpassa  pelos seus contemporâneos, e por cada um  em  si mesmo, enquanto parceiro no tempo.
Nesta circunstância, é um truísmo dizer  que a Literatura e a Arte   visitam o que de mais fundo existe no coração dos homens  –  o desejo de  alterar as leis da realidade,  a vontade de  transfigurar o mundo,  funcionando uma e outra como uma sonda que  traz à claridade o que em princípio vive escondido no íntimo.  Arte e Literatura são produzidas por quem coloca o pudor de lado e deixa  que   aflore aquilo que as pessoas no seu dia a dia controlam ou tentam ignorar. Por isso, a Literatura, enquanto ramo da Arte, à primeira vista,  surge como repositório  de uma matéria deformada,  e carece de aprendizagens  no seu acesso,  para que  não seja repelida como inútil, e interpretada  até como prática ofensiva. A Literatura, então, porque vive da  expressividade da  linguagem, tanto  refere os lados mais etéreos  da vida,  como  reproduz os  sulcos  mais materiais da realidade,  procurando   transformá-los  em lugares de  sublimidade e grandeza.  A  afirmação  de Terêncio de que “nada do que é humano me é estranho” encontra  neste campo   a sua  concretização  maior. Quando lemos no romance “Naus”,  de Lobo Antunes,  expressões como esta , “Ao sétimo escarro, amanheceu ”,  sabemos que vamos ao encontro do que  está gravado na nossa própria natureza, ensinando-nos não só a morrer, mas sobretudo a viver enquanto seres cercados por um corpo.   

O que eu quero dizer é que os padres  de hoje não são mais os sacerdotes antigos que podiam passar  cinquenta anos da sua vida sem outras referências que não fossem os textos litúrgicos e os Testamentos.  Hoje em dia, os padres são leitores e são frequentadores dos locais onde se mostra a Arte.  Reconhecem  que  a Arte e a Literatura, ainda quando negam o mistério,  servem para corroborar  a sua presença e dele  também fazem parte. Felizmente, desapareceu o preconceito antigo de que quem encontrou a fé está munido de uma ferramenta de superioridade  sobre os demais, para se partir do princípio de que quem crê,  tem a felicidade de ter encontrado um repouso que os outros porventura não encontram.  Se interpreto bem, a envangelização, tal como está neste momento a ser entendida,  realiza-se  sobretudo neste segundo  sentido de partilha.  

É que  a Religião tem em comum com a Arte o facto de  ambas  serem manifestações que demandam  a Totalidade. Totalidades diferentes, é verdade.   Em princípio,  os crentes  encontraram a Totalidade,  encontraram um nome para essa totalidade,  e dialogam com ela  com a certeza de quem viu a verdade e ficou maravilhado.  Os artistas dialogam com uma totalidade  difusa,  para a qual não encontraram um nome exacto, um rosto definido,  ou uma verdade revelada.  Por isso agem sem rede e sem certeza. Sem sistema e sem protecção de qualquer género. A sua experiência é a da solidão.  Serão antagónicos estes campos? Não são.  A vida mostra que se entra e sai de um campo para o outro com muito mais frequência do que se  admite em  voz alta. A escuta mútua e recíproca  mostra que existe vantagem  na sua convivência.  Desse ponto de vista, partilho inteiramente da opinião de um conservador  como foi, no domínio do pensamento, o poeta  T.S. Elliot .  Defendeu  o autor de “The Waste  Land”  que  em qualquer sociedade,  “A sensibilidade artística se empobrece com o  divórcio da sensibilidade religiosa, a religiosa com a separação da artística…”

Vale a pena  perceber também quanto o domínio artístico  pode preencher a dimensão  mística  das pessoas.  Hubert  Reeves,  no ensaio “Man and the Universal”,  declarou  o seguinte – “A minha relação com a transcendência passa pela Arte, e sobretudo pela música. Mas não pelas práticas religiosas. As salas de concerto são as minhas igrejas. E os quartetos de Schubert falam comigo, mais eloquentemente que os argumentos de um Além que nos ultrapassa e que nos rodeia por todos os lados”.   E citando  Saint-John Perse  acrescentou   – “Quando as mitologias se extinguem, é na Poesia que o divino encontra refúgio”.  Aliás, recentemente,  Giorgio  Agamben  espantava-se com o facto de  que hoje em dia o homem moderno  possa viver não só sem Deus mas sobretudo sem pathos  por não ter Deus,  o  pathos  antevisto  por  Dostoyevski  e Nietzsche , quando  entenderam que  Deus tinha morrido.  Aquele autor diz mesmo que o homem comum sobreviveu a Deus sem dificuldades e é hoje espantosamente respeitoso das regras e das convivências sociais como se a profecia  segundo a qual  “Se  Deus está morto, então tudo é permitido” não lhe dissesse respeito.   À capacidade  de  o homem moderno  encarar a vida sem o conforto da religião, suportando-a  com resignação, e sem vislumbre de qualquer sentido metafísico,  chama  aquele autor  o “heroísmo do homem comum”. Nesse sentido,  quando a Igreja refere que existe uma des-religiosidade das sociedades contemporâneas,  sobretudo no Ocidente, não deixa de ter razão.  A questão é que  às sociedades  fortemente  laicizadas – não falo do ponto de vista político  onde a separação dos poderes  é garante da integralidade religiosa -  às sociedades fortemente laicizadas, dizia,  ao contrário daquilo em que se acreditava  há poucas décadas, correspondem sociedades gradualmente  despoetizadas.  E se porventura elas caminharem  no sentido de uma  despoetização  crescente,  por certo que caminharão  no sentido da  sua própria desumanização.  

Mas, sem dúvida,  que não acontecerá.

Na enumeração das qualidades dos sacerdotes, não  referi  a qualidade mais importante que é ser  esperançoso.  Suponho que em face dos grandes desafios do presente,  e  das opções  difíceis  que os sacerdotes  enfrentam nos dias de hoje,   para nos transmitirem a sua esperança,  e nos ajudarem a transitar  com mais frequência entre os dois campos  das Totalidades distintas -  a uma delas chamamos Deus,  e à outra, à falta de melhor, Interrogação  -   permitam-me que mencione  três  aspectos  fortemente  sensíveis.

Um  deles   diz respeito à  pregação,  ao sermão e à homilia na liturgia do domingo.  Com o devido respeito,  julgo que muitos daqueles que são os  tais “heróis” da vida comum, os cidadãos que se comportam  bem,  mas  prescindem da ideia de Deus,   raramente  encontram  nas prédicas  dos sacerdotes   discursos que os convençam,  ou  sequer os  atraiam.  É verdade que a Igreja tem um bom refúgio. Cristo, através dos Evangelhos,  legou à cristandade poderosas parábolas  que têm alimentado  vinte séculos de Cultura, Civilização  e Crença.  Essa é a base da Grande Escritura, e assunto da Grande Leitura,  de  contínua exegese e interpretação.  Mas  eu estou como o filho de uma  amiga próxima.  Quando criança, sempre que a mãe tinha uma dúvida, aconselhava-a –  “Mãe, é muito fácil, pensa  o que faria  Jesus  no teu lugar”.  É uma forma pueril de encarar a questão. Mas eu pergunto  -  Se   Jesus Cristo aproveitou a tradição hebraica da parábola para  falar aos seus contemporâneos,  por que razão  os métodos da narrativa e da poética  contemporâneas estão totalmente ausentes da pregação?  O que faria Ele no  lugar do pregador de hoje?  Ausentar-se-ia  por completo  das fábulas  que  povoam  o imaginário  moderno?  Já não digo que  os sacerdotes   refiram  textos  claramente  dia-bólicos,  mas,  ao menos  alguma incorporação  de  textos de  autores  que foram crentes e que deram testemunho  da sua adesão àquela  Totalidade cujo nome é Deus.  A lista seria numerosa, como se sabe.  A verdade é que  somos  carentes de  parábolas, de histórias,  discursos  com enigma e desenlace,  a narrativa    que está na base da comunicação  com os outros. Até mesmo  o aforismo, essa síntese  mínima do pensamento,  contém uma história.  Wallace Stevens  criou o célebre verso  com o qual  abre  um inesquecível  poema,   desta forma - “Poetry is the supreme fiction, madame…”  Sugerindo  que  a poesia  também  é  uma  ficção,  uma história.  Aliás, os homens poderiam ser definidos como aqueles que  deixaram de ser animais quando começaram a contar  histórias.  Segundo  os princípios cristãos,  Cristo soube fazê-lo  exemplarmente por nós todos.  Em minha opinião,  porém, o refúgio  das prédicas dominicais  na  linguagem  abstracta,  cifrada,  predominantemente  predicativa,  com o uso do silogismo que  na primeira premissa já contém a conclusão, ajuda   o homem comum a sair pela porta fora do templo e a  continuar a ser  um estoico solitário,  dialogando sozinho com  as feridas do seu corpo.  
Do mesmo modo que  estimula  esse estoicismo solitário,  o do homem que tudo cala e consente,  o silogismo circular de que Deus é amor, nós somos filhos de Deus, logo, nós somos amor.  Ora nós  não somos só amor. Nós somos a madrugada deslumbrante e somos a sujidade que se cospe.  Alargando  a metáfora,  infelizmente, o  segundo elemento  é predominante  em muitos homens e mulheres que dominam e forçam ao silêncio  outros homens e  outras mulheres.  E por isso,  a meu ver,  a Igreja dos cristãos participa  no estímulo  à  desordem  profunda quando  convida à submissão e ao silêncio conformado, em nome da  ordem de superfície.  O apelo à ordem  pacífica   que  se realiza  na vida  quotidiana  sem fala, quando  injusta,   conduz  ao mundo sem outros horizontes  que não sejam os que nos dão  os cumes  das montanhas e a linha azul  do mar. Sendo  Cristo aquele que veio contar parábolas  para que os homens se libertassem da sua condição afásica,  a sua advertência de que  “se eles, os discípulos, se calarem, as próprias pedras falarão” (Lucas, 19.40),  ainda que aplicada a  um  contexto diferente,  continua   a ter pertinência .  Se não for assim,  se não for  ele  a falar e a conduzir os outros   à  fala, como pode esse  padre da paróquia mais próxima ser um homem esperançoso e ajudar os  seus vizinhos, aqueles a quem  chama  carinhosamente o  seu rebanho,  a serem-no também?  Gente com esperança?

 Visto a partir de fora, as exigências que se colocam  ao ministério  dos padres  são muito  elevadas.  E porque estamos  sob a referência da Arte,  ouso dizer que  ao padre, além de tudo o mais, também se lhe pede que seja  um esteta, uma vez que  lhe  assiste o princípio  de que vale a pena contaminar  o homem comum,  enredado no desamparo  metafísico,  com  uma ideia de transcendência. Ora, para além do dom da palavra, que comporta o dom  da   parábola,  base fundamental de  transmissão da doutrina,  não me parece que  alguns dos  ambientes , onde se desenrolam   os actos de culto,  possam  continuar desprovidos de uma encenação  compatível  com  as exigências de hoje.
 
Hoje, como está  à vista,   tal como  foi previsto há  várias décadas,   a qualidade  dos conteúdos  está sendo  afogada  pela exuberância dos meios.  Nos anos cinquenta,  quando os mentores da BBC  defenderam que a televisão iria poder   partilhar com o povo os níveis  mais levados da cultura - nas suas palavras de então, ballet  e música clássica -   eles estavam a vislumbrar o que hoje,  de facto,  foi  possível concretizar.  Na profusão dos canais temáticos,  a cultura  erudita e  superior está  acessível  a toda a gente. Mas  as escolhas  maioritárias, como se sabe,  são feitas no sentido  diametralmente  oposto.  Através dos meios mais sofisticados,  de forma surpreendente,  o mundo arcaico  ressurgiu como um fantasma e  impôs-se.  Aliás, por razões compreensíveis,  quanto mais arcaicas são as culturas,  melhor  elas se  inscrevem no panorama  da comunicação eletrónica.  O  cerne do pós-modernismo  é isso mesmo.  O mundo  encheu-se  de espectáculos  bárbaros em vez dos tais ballets e música clássica. Portugal muito particularmente.

Como competir a Igreja com essa tendência neo-barroca no seu absoluto paroxismo electrónico?  Como temperá-la? Como invertê-la?  Como  combatê-la,  se  entende  que  deve combatê-la?  Deve a Igreja propor o seu oposto? Oferecer  momentos de silêncio?  Espaços de simplicidade?  Música de qualidade? Letras  de canções religiosas  que não rocem o indigente?  Passos coreográficos que não imitem um  carnaval  caótico?  -  Coloco-me todas estas questões, não tenho  respostas.  Mas calculo que esta seja uma preocupação  da Igreja actual  e que  os seus membros    vivam  na  contingência permanente de encontrar soluções   imediatas e práticas,  longe da abstração dos princípios que gostariam de poder aplicar.  O que não deve ser fácil. 

São muitas, pois,  as  qualidades que  parecem ser  requeridas  ao  padre de hoje.  Como se a ele se aplicasse a exigência  estoica   de que  exigir o máximo é o mínimo.  Pois ainda lhe pedimos  que seja  um prático,  um  orador, um esteta, um  leitor,  e por aí adiante.  A começar pela primeira de todas as qualidades  -  A de possuir uma  atitude  acolhedora, sem limites, aquela que  leva as pessoas   a olharem  para a torre da  igreja que fica  ao fundo da rua, e  a pensarem  que no interior desse edifício,   haja o que houver,   lá  está,  à   espera  de quem entre,  um homem  que se apaixonou pelas criaturas  da Terra. As próximas e as que vêm do fim do Mundo.    






* Texto apresentado por Lídia Jorge durante o painel "Desafios à vida dos padres"
Simpósio do Clero, 2015 - "Padre, Irmão e Pastor", 

 31 de Agosto de 2015


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