O Preço Da Palavra
Lídia Jorge*
O
tema deste painel é deveras
estimulante, pois falar, a partir de um ponto de vista exterior, sobre os desafios que se colocam hoje em dia à vida dos padres,
equivale a passar em revista algumas das
mais elevadas utopias que movem
as sociedades contemporâneas. Aqueles a
quem nos dirigimos, por convite dos próprios,
são os intérpretes mais
visíveis de um determinado desejo
de superação colectiva
latente em todas as culturas, e
esse ministério tem um preço. Sendo
pessoas como todos, estão os padres investidos, publicamente, de um projecto in-humano que é
o da realização activa de um processo de transcendência. Ou por outras palavras, são os padres pessoas comuns
que aceitaram ser investidas de responsabilidades incomuns.
Tão incomuns que do padre se espera que seja justo, atento, acolhedor, fraterno, terno, probo, simples, dinamizador, persistente, valente, discreto, casto, visionário, prosélito,
paciente, confidente, eloquente e sábio. Se for tudo isso, talvez mereça que se lhe junte, por certo, a palavra que está na meta das suas vidas, na terminologia cristã, que é nada mais nada
menos do que ser santo.
Mas
essas contas não nos dizem respeito, essa contabilidade da perfeição e da imperfeição é do foro
privado, e coincide com as contas que todos damos da nossa humanidade, mais que não seja, perante nós mesmos. O que importa
nesta circunstância é que
de entre todas as qualidades diante das quais o padre
parece ter o dever de não falhar,
sobreleva uma outra, que hoje em
dia toda a gente menciona, quando a
Igreja é avaliada enquanto entidade
de poder e influência. Ao padre exige-se-lhe que saiba ler o seu tempo. Mais do que isso, exige-se-lhe
que
ajude a construir o tempo que
está para vir. O que equivale a pedir-se-lhe que seja um clarividente e um vanguardista, ou pelo
menos que reconheça onde está a
vanguarda e perante ela se defina em público.
Não é
pouca coisa, sobretudo num tempo em que as questões vitais do direito ao nascimento, do direito à
morte, as novas questões de género e o novo agregado humano, bem como os
difíceis dilemas do convívio global sobre a Terra, ocupam lugares
de disputa e são motivos de fractura. Nesse
difícil exercício de clarividência, como em todas as outras tarefas, por certo que os padres não ignoram os anseios mais profundos dos seus vizinhos no
tempo, nem os seus desejos nem os seus sonhos, e nem as suas perversidades e as suas abjecções, porque
os homens a as mulheres são feitos de tudo
isso. E também não ignoram o esforço a que procedem outros campos da
espiritualidade, que não só o religioso,
para que as pessoas se elevem
acima dos seus limites, através da prática do bem, mas também da fantasia e da
beleza. E é aí que são convocadas, como disciplinas fundamentais,
a Literatura e a Arte. São
convocadas por tudo aquilo que representam em matéria de ensaio de superação,
e por isso mesmo proporcionam um indiscutivel espaço de conhecimento. Um
conhecimento indispensável, creio, a todo aquele que precisa de entender em profundidade o fluxo de
vida que perpassa pelos seus
contemporâneos, e por cada um em si
mesmo, enquanto parceiro no tempo.
Nesta
circunstância, é um truísmo dizer que a
Literatura e a Arte visitam o que de
mais fundo existe no coração dos homens –
o desejo de alterar as leis da realidade, a vontade de
transfigurar o mundo, funcionando
uma e outra como uma sonda que traz à
claridade o que em princípio vive escondido no íntimo. Arte e Literatura são produzidas por quem
coloca o pudor de lado e deixa que aflore
aquilo que as pessoas no seu dia a dia controlam ou tentam ignorar. Por isso, a
Literatura, enquanto ramo da Arte, à primeira vista, surge como repositório de uma matéria deformada, e carece de aprendizagens no seu acesso, para que
não seja repelida como inútil, e interpretada até como prática ofensiva. A Literatura,
então, porque vive da expressividade
da linguagem, tanto refere os lados mais etéreos da vida,
como reproduz os sulcos mais materiais da realidade, procurando transformá-los em lugares de
sublimidade e grandeza. A afirmação de Terêncio de que “nada do que é humano me é
estranho” encontra neste campo a sua concretização
maior. Quando lemos no romance “Naus”, de Lobo Antunes, expressões como esta , “Ao sétimo escarro, amanheceu ”,
sabemos que vamos ao encontro do que
está gravado na nossa própria natureza, ensinando-nos não só a morrer,
mas sobretudo a viver enquanto seres cercados por um corpo.
O que
eu quero dizer é que os padres de hoje
não são mais os sacerdotes antigos que podiam passar cinquenta anos da sua vida sem outras
referências que não fossem os textos litúrgicos e os Testamentos. Hoje em dia, os padres são leitores e são
frequentadores dos locais onde se mostra a Arte. Reconhecem que a
Arte e a Literatura, ainda quando negam o mistério, servem para corroborar a sua presença e dele também fazem parte. Felizmente, desapareceu o
preconceito antigo de que quem encontrou a fé está munido de uma ferramenta de
superioridade sobre os demais, para se
partir do princípio de que quem crê, tem
a felicidade de ter encontrado um repouso que os outros porventura não
encontram. Se interpreto bem, a
envangelização, tal como está neste momento a ser entendida, realiza-se
sobretudo neste segundo sentido
de partilha.
É
que a Religião tem em comum com a Arte o
facto de ambas serem manifestações que demandam a Totalidade. Totalidades diferentes, é
verdade. Em princípio,
os crentes encontraram a
Totalidade, encontraram um nome para
essa totalidade, e dialogam com ela com a certeza de quem viu a verdade e ficou
maravilhado. Os artistas dialogam com
uma totalidade difusa, para a qual não encontraram um nome exacto,
um rosto definido, ou uma verdade
revelada. Por isso agem sem rede e sem
certeza. Sem sistema e sem protecção de qualquer género. A sua experiência é a
da solidão. Serão antagónicos estes
campos? Não são. A vida mostra que se
entra e sai de um campo para o outro com muito mais frequência do que se admite em
voz alta. A escuta mútua e recíproca
mostra que existe vantagem na sua
convivência. Desse ponto de vista,
partilho inteiramente da opinião de um conservador como foi, no domínio do pensamento, o poeta T.S. Elliot .
Defendeu o autor de “The
Waste Land” que em
qualquer sociedade, “A sensibilidade artística se empobrece com o divórcio da sensibilidade religiosa, a
religiosa com a separação da artística…”
Vale a
pena perceber também quanto o domínio
artístico pode preencher a dimensão mística das pessoas.
Hubert Reeves, no ensaio “Man and the Universal”, declarou o seguinte – “A minha relação com a transcendência passa pela Arte, e sobretudo pela
música. Mas não pelas práticas religiosas. As salas de concerto são as minhas
igrejas. E os quartetos de Schubert falam comigo, mais eloquentemente que os argumentos
de um Além que nos ultrapassa e que nos rodeia por todos os lados”. E citando
Saint-John Perse acrescentou – “Quando as mitologias se extinguem, é na
Poesia que o divino encontra refúgio”.
Aliás, recentemente, Giorgio Agamben
espantava-se com o facto de que hoje
em dia o homem moderno possa viver não
só sem Deus mas sobretudo sem pathos por não ter Deus, o pathos
antevisto por Dostoyevski e Nietzsche , quando entenderam que Deus tinha morrido. Aquele autor diz mesmo que o homem comum sobreviveu a Deus
sem dificuldades e é hoje espantosamente respeitoso das regras e das
convivências sociais como se a profecia
segundo a qual “Se Deus está morto, então tudo é permitido” não
lhe dissesse respeito. À capacidade de o
homem moderno encarar a vida sem o
conforto da religião, suportando-a com
resignação, e sem vislumbre de qualquer sentido metafísico, chama
aquele autor o “heroísmo do homem
comum”. Nesse sentido, quando a Igreja
refere que existe uma des-religiosidade das sociedades contemporâneas, sobretudo no Ocidente, não deixa de ter
razão. A questão é que às sociedades fortemente laicizadas – não falo do ponto de vista
político onde a separação dos
poderes é garante da integralidade
religiosa - às sociedades fortemente laicizadas, dizia, ao contrário daquilo em que se
acreditava há poucas décadas,
correspondem sociedades gradualmente
despoetizadas. E se porventura
elas caminharem no sentido de uma despoetização crescente, por certo que caminharão no sentido da sua própria desumanização.
Mas, sem
dúvida, que não acontecerá.
Na
enumeração das qualidades dos sacerdotes, não
referi a qualidade mais
importante que é ser esperançoso. Suponho que em face dos grandes desafios do
presente, e das opções
difíceis que os sacerdotes enfrentam nos dias de hoje, para nos transmitirem a sua esperança, e nos ajudarem a transitar com mais frequência entre os dois campos das Totalidades distintas - a uma delas chamamos Deus, e à outra, à falta de melhor, Interrogação - permitam-me
que mencione três aspectos
fortemente sensíveis.
Um deles diz respeito à pregação, ao sermão e à homilia na liturgia do domingo. Com o devido respeito, julgo que muitos daqueles que são os tais “heróis” da vida comum, os cidadãos que se comportam bem, mas
prescindem da ideia de Deus, raramente encontram
nas prédicas dos sacerdotes discursos que os convençam, ou sequer os atraiam.
É verdade que a Igreja tem um bom refúgio. Cristo, através dos
Evangelhos, legou à cristandade
poderosas parábolas que têm alimentado vinte séculos de Cultura, Civilização e Crença.
Essa é a base da Grande Escritura, e assunto da Grande Leitura, de contínua exegese e interpretação. Mas eu
estou como o filho de uma amiga
próxima. Quando criança, sempre que a
mãe tinha uma dúvida, aconselhava-a – “Mãe,
é muito fácil, pensa o que faria Jesus no teu lugar”. É uma forma pueril de encarar a questão. Mas
eu pergunto - Se
Jesus Cristo aproveitou a tradição hebraica da parábola para falar aos seus contemporâneos, por que razão
os métodos da narrativa e da poética
contemporâneas estão totalmente ausentes da pregação? O que faria Ele no lugar do pregador de hoje? Ausentar-se-ia
por completo das fábulas que
povoam o imaginário moderno? Já não digo que os sacerdotes refiram textos claramente dia-bólicos,
mas, ao menos alguma incorporação de textos de autores que foram crentes e que deram testemunho da sua adesão àquela Totalidade cujo nome é Deus. A lista seria numerosa, como se sabe. A verdade é que somos
carentes de parábolas, de histórias, discursos com enigma e desenlace, a narrativa que está na base da comunicação com os outros. Até mesmo o aforismo, essa síntese mínima do pensamento, contém uma história. Wallace Stevens criou o célebre verso com o qual abre um
inesquecível poema, desta
forma - “Poetry is the supreme fiction,
madame…” Sugerindo
que a poesia também é uma ficção, uma história. Aliás, os homens poderiam ser definidos como
aqueles que deixaram de ser animais
quando começaram a contar histórias. Segundo os princípios cristãos, Cristo soube fazê-lo exemplarmente por nós todos. Em minha opinião, porém, o refúgio das prédicas dominicais na linguagem abstracta, cifrada, predominantemente predicativa,
com o uso do silogismo que na
primeira premissa já contém a conclusão, ajuda o homem
comum a sair pela porta fora do templo e a continuar a ser um estoico solitário, dialogando sozinho com as feridas do seu corpo.
Do
mesmo modo que estimula esse estoicismo solitário, o do homem que tudo cala e consente, o silogismo circular de que Deus é amor, nós
somos filhos de Deus, logo, nós somos amor.
Ora nós não somos só amor. Nós
somos a madrugada deslumbrante e somos a sujidade que se cospe. Alargando
a metáfora, infelizmente, o segundo elemento é predominante em muitos homens e mulheres que dominam e
forçam ao silêncio outros homens e outras mulheres. E por isso, a meu ver, a Igreja dos cristãos participa no estímulo
à desordem profunda quando convida à submissão e ao silêncio conformado,
em nome da ordem de superfície. O apelo à ordem pacífica que se
realiza na vida quotidiana sem fala, quando injusta,
conduz ao mundo sem outros horizontes que não sejam os que nos dão os cumes das montanhas e a linha azul do mar. Sendo
Cristo aquele que veio contar parábolas
para que os homens se libertassem da sua condição afásica, a sua advertência de que “se eles,
os discípulos, se calarem, as próprias
pedras falarão” (Lucas, 19.40), ainda
que aplicada a um contexto diferente, continua a ter pertinência
. Se não for assim, se não for
ele a falar e a conduzir os
outros à fala, como pode esse padre da paróquia mais próxima ser um homem
esperançoso e ajudar os seus vizinhos,
aqueles a quem chama carinhosamente o seu rebanho,
a serem-no também? Gente com
esperança?
Visto a partir de fora, as exigências que se
colocam ao ministério dos padres
são muito elevadas. E porque estamos sob a referência da Arte, ouso dizer que ao padre, além de tudo o mais, também se lhe
pede que seja um esteta, uma vez que lhe
assiste o princípio de que vale a
pena contaminar o homem comum, enredado no desamparo metafísico,
com uma ideia de transcendência.
Ora, para além do dom da palavra, que comporta o dom da parábola,
base fundamental de transmissão
da doutrina, não me parece que alguns dos
ambientes , onde se desenrolam os actos de culto, possam
continuar desprovidos de uma encenação compatível
com as exigências de hoje.
Hoje,
como está à vista, tal
como foi previsto há várias décadas, a
qualidade dos conteúdos está sendo
afogada pela exuberância dos
meios. Nos anos cinquenta, quando os mentores da BBC defenderam que a televisão iria poder partilhar com o povo os níveis mais levados da cultura - nas suas palavras de
então, ballet e música clássica - eles estavam a vislumbrar o que hoje, de facto, foi possível concretizar. Na profusão dos canais temáticos, a cultura erudita e
superior está acessível a toda a gente. Mas as escolhas maioritárias, como se sabe, são feitas no sentido diametralmente oposto. Através dos meios mais sofisticados, de forma surpreendente, o mundo arcaico ressurgiu como um fantasma e impôs-se.
Aliás, por razões compreensíveis, quanto mais arcaicas são as culturas, melhor elas se
inscrevem no panorama da
comunicação eletrónica. O cerne do pós-modernismo é isso mesmo.
O mundo encheu-se de espectáculos bárbaros em vez dos tais ballets e música clássica. Portugal muito particularmente.
Como
competir a Igreja com essa tendência neo-barroca no seu absoluto paroxismo
electrónico? Como temperá-la? Como invertê-la? Como
combatê-la, se entende
que deve combatê-la? Deve a Igreja propor o seu oposto?
Oferecer momentos de silêncio? Espaços de simplicidade? Música de qualidade? Letras de canções religiosas que não rocem o indigente? Passos coreográficos que não imitem um carnaval
caótico? - Coloco-me todas estas questões, não tenho respostas.
Mas calculo que esta seja uma preocupação da Igreja actual e que os
seus membros vivam
na contingência permanente de
encontrar soluções imediatas e práticas, longe da abstração dos princípios que gostariam
de poder aplicar. O que não deve ser
fácil.
São
muitas, pois, as qualidades que parecem ser requeridas ao padre de hoje. Como se a ele se aplicasse a exigência estoica de que exigir o
máximo é o mínimo. Pois ainda lhe
pedimos que seja um prático,
um orador, um esteta, um leitor,
e por aí adiante. A começar pela
primeira de todas as qualidades - A de possuir uma atitude acolhedora, sem limites, aquela que leva as pessoas a olharem para a torre da igreja que fica ao fundo da rua, e a pensarem que no interior desse edifício, haja o que houver, lá está,
à espera de quem entre, um homem
que se apaixonou pelas criaturas da Terra. As próximas e as que vêm do fim do
Mundo.
* Texto apresentado por Lídia Jorge durante o painel "Desafios à vida dos padres"
Simpósio do Clero, 2015 - "Padre, Irmão e Pastor",
Simpósio do Clero, 2015 - "Padre, Irmão e Pastor",
31 de Agosto de 2015
Sem comentários :
Enviar um comentário